Alô alô, surrealismo, por Flávio Tavares*
A sociedade de consumo criou a figura única do consumidor e fez desaparecer o cidadão. Passo a passo, a ânsia de consumir ofusca as concepções ou teses filosófico-religiosas que explicam a existência e apresentam a vida como uma passagem em busca da transcendência – seja da pessoa ou da sociedade. O espírito religioso continua, mas as chamadas “novas igrejas” (aquelas surgidas do nada, como cogumelos na relva após a chuva) ganham adeptos propagando a ideia da cobiça e do consumo, não a da solidariedade, caridade e amor.
Tudo o que se faz hoje, faz-se para consumir. Nessa voragem, somos vistos apenas como grupo ou tropa compelida a “ter coisas e objetos”. Nada mais.
Nessa sociedade que manda consumir, porém, é comum o descaso das grandes empresas com relação a quem consome. Se já não bastassem os códigos Civil e Penal, nem o Código de Defesa do Consumidor trava a ânsia de lucro fácil, próximo à rapina, de algumas delas, principalmente no setor de serviços. Nunca havia entendido, por exemplo, as centenas de milhares de reclamações em juízo e órgãos de defesa do consumidor contra as empresas de telefonia. Há pouco, porém, quando a telefônica Oi começou a enviar-me contas de um telefone móvel que jamais tive nem tenho, penetrei nos labirintos do surrealismo.
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Surrealismo é palavra francesa, um galicismo que expressa aquilo que vai além da realidade por ser um absurdo em si mesmo. Os absurdos são inexplicáveis, mas existem – como os fantasmas...
Há 15 anos, tenho no litoral do Estado do Rio de Janeiro um telefone fixo da Oi, com conta em dia em débito automático bancário. A partir de abril, porém, a empresa me envia contas de um suposto telefone móvel e me desperta, cedo nas manhãs, com uma gravação sobre “a dívida”. Ameaça suspender serviço que não tenho... Agora, por escrito, informa que me anotará “como devedor” no SPC, Serasa e similares, com o que – me ameaça noutras palavras – o infortúnio cairá sobre mim.
As contas sobre o fantasmagórico celular não mencionam sequer o número do telefone, evidência de que não existe. No setor de reclamação da empresa, as atendentes limitam-se a dizer que nada podem encaminhar se eu não informar o número do celular...
A Anatel, agência federal que devia ater-se aos direitos dos usuários, diz o mesmo. Ninguém, porém, vê o óbvio: não há número porque o telefone não existe!
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Meu caso pessoal não é um assunto pessoal, mas a mostra, em carne própria, de uma situação que aflige milhares (ou centenas de milhares) de cidadãos.
Ou, até alguns milhões, sem exagero: soube-se, agora, que há 160 milhões de telefones celulares no Brasil, muito mais do que um para cada adulto. (É claro que, aí, entra aquele pessoal do Senado, da Câmara dos Deputados, assembleias legislativas e governos estaduais e federal, ou até municipais, que têm vários telefones móveis, todos à conta do Estado).
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Perante algo tão ardiloso como isso, o que pode fazer o cidadão comum? Se tudo é difícil para um jornalista que, há mais de meio século, convive com as artimanhas do poder e pode distinguir o ardil dos que mandam até pelo piscar de olhos, o que restará para as pessoas simples e de boa-fé, que acreditam piamente na propaganda, seja dos governos ou de empresas privadas que oferecem o paraíso?
Cada dia mais, o cidadão é refém ou prisioneiro duma engrenagem burocrática, em que o programa de computador administra tudo soberanamente e não existe ninguém para resolver uma pendência ou atender a um assunto.
Nesse surrealismo, amanhã – para pensar – ligaremos o telefone celular!
*Jornalista e escritor
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