O Alfaiate

        Um Senhor de idade ou alguém abatido pela mendiga vida que leva. Um pobre homem sentado à sombra de um Cinamomo , no pasto verdinho pela intensa umidade da última semana de inverno chuvoso. Alguém que poderia ser um ladrão ou um pedinte, causando um certo temor nas pessoas que o viam ou tinham que próximo a ele estar por alguns instantes, na sinaleira ou na calçada. Agora imaginem, um mendigo numa esquina movimentada da Ramiro Barcelos ,com a Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, sentado na grama com seus objetos e muito retalhos de tecidos.
               Isso -além do triste fato daquele homem ali naquela vida medíocre, suja, com roupas velhas e encardidas e todas essas coisas mais que podemos sentir fome, sede, necessidade de um lar e não ter etc – chamou-me uma primeira impressão depreciativa e revoltada com a situação desse infeliz homem, acredito que com uma idade entre uns 40 a 50 anos, por aí. Poderia ser infeliz, mas no fundo ele tinha uma certa felicidade ou certa loucura.
                Observei que ele tinha em mãos retalhos de tecido de jeans. Sim, ele tinha pedaços desse tecido e fazia questão de mostrar para as pessoas que passavam. Fiquei curiosa e continue olhando, enquanto a sinaleira não abria. Ele estava alegre em mostrar que tinha uma utilidade, o estar produzindo algo. Mas o que seria? Logo sem seguida, ele levantou um blazer cinza-chumbo , com ares femininos. E na parte das costas tinha uma grande remenda do tamanho de um palmo de largura ou mais costurado. Ele levantava e mostrava sorrindo, como uma criança que faz um desenho e mostra à mãe o que acabou de desenhar , estando orgulhoso.
                      Era como se ele quisesse pessoas que o admirassem, sim, eu era uma delas. Mas ainda sim, não estava entendo aquilo que ele mostrava. Quando ele pegou tipo de uma serrinha e começou a cortar mais um pedaço de uma calça jeans e com outro colocar sobre o blazer, pude entender o que ele queria mostrar. Ele havia feito um corte na vertical dividindo o casado em dois na parte das costas, pois acho que não servia nele. Então, ele cortou um pedaço do jeans e costurou entre essas duas metades e o alargou. Depois vi que ele tinha uma agulha e com ela fazia suas costuras. Achei fantástico, criativo.
                 Ele era , infelizmente, o alfaiate na mendicância. Aliás, não vi ele pedir nada, ele só desejava reconhecimento pelo seu grande feito. Eu fiquei muito emocionada, pois aquelas pessoas que ali passavam só viam o lado , supostamente, negativo daquele senhor ali , como um cão abandonado largado às moscas pelas ruas. Alguém sem valor econômico, sem família, sem trabalho, talvez um alcoólatra , um ladrão. Porém, não. Eu juro vi nele o sorriso de uma criança boba por ter conseguido construir seu primeiro castelo de areia.
           
                  Mesmo assim, era triste ver aquele homem viver em condições tão cruéis, quando de fato nos sentimos mal em não ter um banho, principalmente quando a água do chuveiro não esquenta o suficiente desligando-se sozinho, nesse inverno frio que faz no Sul. O pior de tudo é o “sentir fome”. Ver as forças físicas esvaírem-se , os olhos esfumaçarem , o corpo formigar, o estômago doer e desejar comer. E não tem 1 centavo para comprar uma migalha que seja. É horrível, é absurdo , é desumano, é triste, é lamentável!
                    Se a Independência do Brasil foi clamada no Riacho Ipiranga , ali a desigualdade, o esquecimento , a miséria eram reclamadas por esses populares sem rumo, sem destino certo, vivendo na marginalidade, às escuras, no esquecimento, no Arroio Dilúvio, na Avenida Ipiranga. Este homem, sem carteira de trabalho, com uma grande carga de originalidade e necessidade, criatividade, vontade de produzir, ali , um senhor – mesmo não conhecendo seu passado, suas estórias- mesmo assim, ali jogado como um vilão, como um câncer da segurança, como uma imoralidade exposta – um lixo humano , é lastimável.
               Ele queria ser reconhecido, eu o reconheci. Não me julgo agora uma super pessoa, mas alguém com uma tamanha sensibilidade. O VER essencial, o PORQUE das coisas, ou o COMO aconteceu. Não pude ouvi-lo, saber sobre sua vida, nem registrar sua façanha. O ato de costurar poderia ser antigo, mas era digno , ao meu ver. Minha avó foi costureira , meu avô foi sapateiro, fabricava botas de gaúcho em Alegrete, profissões muito bonitas, uma função social : vestir e calçar. E era o que ele desejava: inventar, talvez, aquecer-se…essas coisas…
(Texto antigo de outro blog meu)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Lembranças chuvosas...

ÍNDIOS MODERNOS - DIA DO ÍNDIO

Filosofias sobre Raves